Artigo da revista nós (Jornal i)

 

  

 

 

   TEXTO DE MARIA RAMOS SILVA  
        

FOTOGRAFIAS DE JOSÉ MIGUEL SOARES

 

 

         
 

Quando o ciúme é de pedra é uma brecha de Santo António (33 x 15). A Escultura remonta a 2003 e percorreu várias salas de exposição. Foi até dada como desaparecida. Imagine-se. Alguém quis ficar com o ciúme só para si. A Galeria acabou por fechar portas e ficou com o espólio dos artistas. “Diziam que não sabiam onde estavam as peças.” Ricardo Tomás, 41 anos, foi forçado a insistir nos telefonemas até recuperar este original pedaço da sua colecção.

Talvez o ciúme seja feminino. Dentro da sua linha habitual, a peça tem toque de corpo de mulher. Nas costas, uma impureza que acaba por formar uma gruta em miniatura, uma espécie de deficiência que faz jus ao conflituoso sentimento. A pedra não é talhada a partir da ideia. Pelo contrário. Quando encara o bloco e começa a cortar e esculpir procura uma imagem que vai saindo de si próprio. Obtida essa imagem, apreende o que a obra lhe sopra. “Normalmente as pessoas têm ciúmes dos outros devido às imperfeições que elas próprias têm ou julgam ter. Daí o nome. Dou o nome às peças mas fico mais à espera que sejam as pessoas a procurar um novo nome, é quase como um filho adoptado. O principal é o que pensam daquilo que vêem.”

É assim que o ciúme pode resultar de um acaso. Ao contrário do pintor que desbrava o branco da tela, o obreiro da pedra vai escavando até encontrar algo. Quando fazia escultura ao vivo em Loures, todos os dias via passar um rapaz que mirava um artista. Depois da obra feita, o pequeno perguntava algo insistentemente ao pai. Simples. Ou nem por isso. Queria saber tinha o escultor adivinhado que aquilo estava lá dentro. “É um bocado isso. Vamos descobrir o coração das coisas. À procura do caroço da maçã. O ciúme muitas vezes está nessas coisas.”

Ricardo começou por disciplinar o ferro, depois de dez anos a trabalhar como serralheiro civil na Companhia Carris de Ferro de Lisboa. Quando assistiu a uma exposição de João Limpinho na Malaposta decidiu-se por novos avanços. Deitou mãos às peças de autocarros e dedicou-se reciclar parte do lixo em arte, até mergulhar de cabeça na potencialidade do ferro. Do desenho bidimensional, cuja tridimensionalidade é conseguida através das várias sombras, pulou para a pedra, uma paixão nascida os tempos do curso de Escultura. “Pó, barulho, máquinas. Mas é fabuloso.”

O entusiasmo é atravessado pelo ciúme. Dúvidas. Uma bola de hesitações. Quantas e quantas vezes não se vê uma escultura de outro artista com dimensão fenomenal. É aí que o ciúme se instala. Quando a imaginação se atrasa. “Mas ideias estão em fila, quem chega primeiro leva-as!” Tantas vezes também, quando a resposta das galerias tarda, a incerteza paira e a auto-estima balança. “Não ficamos muito certos do que fazemos.”

Depois de quase um ano parado, entregue ao seu bebé de 15 meses, “a grande obra” põe excelência, voltou em força ao activo. O Ciúme, e também os seus pares, como a Nostalgia, o Carrossel, ou o Pudor, podem ser vistos de perto, e levados para casa, até 18 de Novembro na Galeria Municipal de Arruda dos Vinhos.

Procurar no site

© 2009 Todos os direitos reservados.